segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Aos montes.


Ele acordou as seis e vinte e cinco da manhã. De uma noite comum. Evitando a mulher e fingindo paciência.
Como todo dia levantou-se da cama, acordou a esposa. Um beijo frio era o máximo que conseguia extrair.
Enquanto ela dobrava e guardava os lençóis, ele montava a cafeteira comprada em três vezes no novo supermercado da cidade. O café não era tão bom quanto aquele que sua mãe fazia, mas ele gostava mesmo assim.
Enquanto ela quebrava os ovos caipira, ele seguia para seu banho. Gelado. Cheio de planos repetidos do dia anterior.
Sentavam-se junto à esposa na mesa e discutiam o futuro do filho adolescente, prestes a tentar o vestibular. Mas sabiam que era quase inevitável a reprovação. Educado em escola pública, era apelar pra sorte. Próximo ano tem outro. Ele só tem 17 anos. E infelizmente carregava os sonhos frustrados dos pais.
Ele se cansa do papo e resolve ir ao trabalho.
Montes de papéis e uma pequena bolsa de ferramenta.
Monta o mapa em sua mente, monta em sua moto e segue, no trânsito amontoado de carros e calor.
De casa em casa, de cara fechada faz seu trabalho.
Negando um suco, um copo de água ou um copo de refrigerante. Nega também um sorriso.
É tudo muito rápido. Coisa de vinte minutos em cada casa.
Entra e sai sem deixar rastros, a não ser pelo seu trabalho.
São cinco e meia da tarde, suas costas pedem descanso e ele volta ao amontoado de carros. Dessa vez o stress toma lugar do calor da manhã. Nunca é fácil.
Ainda só em casa, deita no sofá e em poucos minutos se perde em sua mente.
Tenta lembrar de algo realmente importante que fez durante o dia. Não lembra nada.
Canta uns versos de um samba de cartola na mente, mas não consegue lembrar o restante.
Só enxerga parafuso e pregos. Só escuta o barulho da furadeira.
Sua vida já calejada de tanto montar um futuro perfeito desmorona ao perceber que o futuro foi ontem. Que o tempo foi pouco pra ele. Que suas mãos estão rasgadas de tanto montar sonhos de estranhos.
Esqueceu-se de montar seu mundo. Seu destino.
Um samba velho, já esquecido. No amontoado de dias montados de frustração.
Afoga a raiva e a dor num copo de cachaça barata e escondida da esposa. Segue fingindo ser um móvel - imóvel - de qualidade, mas só ele sabe, que além de parafusos frouxos os cupins corroem sua alma e quando menos esperar estará no lixo.
Implorando para ser reciclado. Pra ser um samba lembrado.


"Leigh on a green sofa - Lucien Freud"

Um comentário:

  1. Até para descrever a intragável realidade do Brasil, Teca consegue nos servir uma bandeija de brigadeiro...

    "Implorando para ser reciclado.Para ser um samba lembrado"...F>O>D>A

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